terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Casa na árvore




Eu sempre gostei da vida noturna; poder acompanhar o cair da noite, o sol se pôr e a cidade se acender; todas as luzes urbanas brilhando como uma grande constelação bem próxima. Bastam-se as portas se trancarem, as famílias se recolherem para todos os marginalizados ganharem as ruas; seu espaço tão desejado e tão condenado. Os catadores enfim podem pegar seu papelão e repousar; As prostitutas se colocam na vitrine; Os que buscam drogas e sexo percorrem a avenida como quem vai para a feira; Os ratos e as baratas desfilam mais seguros sem os gritos e repúdios. Já eu, muito embora não esconda o fascínio por essa dinâmica da vida noturna nunca fui um boêmio. Geralmente durante a madrugada estaria em alguma conversa mais saidinha no falecido MSN, ou escrevendo algum texto, ou desenvolvendo alguma idéia de peça gráfica.

Hoje tudo mudou. Passei a temer a noite. Nas madrugadas que passo em claro e olho pela janela, sinto angústia; ela me alerta perigo e me assombra. Todo este medo que antes não sentia e que hoje sinto é na verdade da morte. Nunca havia visto sua cara, nem flertado com ela. O luto que hoje visto já deixou tudo escuro demais pra eu ainda contemplar a noite. Não sei quanto tempo dura o luto, mas o meu já faz quatro meses. Levaram meu Pai, levaram meu amigo, levaram meu emprego, levaram meu ministério. Perdas significativas e consecutivas que me desestabilizaram e me deixaram onde estou hoje: No nada.

Percebam que usei o verbo na terceira pessoa ‘levaram’ para mascarar uma certa culpa que sinto por todas essas perdas. O que dói mais na morte do meu Pai não é pela falta que ele faz, pois de certa forma já havia me acostumado a viver sem a presença dele. Dói é tudo que deixei de fazer por ele em vida, conversas que adiei e abraços que recusei. Perdi também meu melhor amigo pelos meus excessos e por não reconhecer nem demonstrar a importância que o outro tem em minha vida. Meu ministério, que significava tudo o que eu podia fazer de relevante no mundo com as ferramentas e os dons que tinha, por fim se resumiram a ativismo religioso. Já o emprego e todas as negligências nele cometidas foram conseqüências deste desequilíbrio emocional e social.

Por isso o medo da noite. Porque quando a cidade se cala, eu entro para o meu quarto, ponho a cabeça sobre o travesseiro e me lembro que sou só eu. Ainda bem que perdi o emprego e não tenho compromissos no outro dia, porque a noite é uma tormenta. Choro todos os dias com a mão na boca para não acordar ninguém e quando o sono pós-soluço chega, sou atormentado com pesadelos. E acreditem ou não, é sempre com meu Pai, com meu amigo ou com meu ex-chefe. Durmo e acordo mais cansado do que se tivesse passado a noite em claro. Desde que tudo começou, o único dia em que não chorei a noite foi um dia desses no ultimo feriado em que fiquei até umas 4:00 da manha conversando e rindo com meu grande irmão MV. Nunca fui de comer muito, mas hoje tenho bem menos apetite. Já emagreci 3 kg., estou mais offline, mais ausente, andando mais só, não tenho agenda nem compromissos marcados e os dias e finais de semana tem se arrastado mais que a segunda-feira. Datas especiais como o último Natal se tornaram entediantes, cansativas e sem sentido. Aliás, muitos sonhos, idéias, indignações e motivações morreram ou perderam o sentido. Tudo o que restou foi um grande vazio.

Rubem Alves¹ disse que “A vida não pode ser medida por batidas de coração ou ondas elétricas. Como um instrumento musical, a vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música, ainda que seja a de um simples sorriso.” Pensando nesse trecho e refletindo sobre tudo isso, me perguntava como podemos continuar vivos, se toda beleza, poesia e motivação dentro de nós se acaba. A resposta é obvia. A vida só acaba com a morte – fim ultimo. Ainda que nos falte razoes para viver, existe toda uma vida lutando para sobreviver dentro de nós. Essa vida é o sangue circulando dos nossos pés a cabeça; é a troca gasosa que nossos pulmões fazem; são os linfócitos produzindo anticorpos para nos imunizar. Por mais dura que seja a noite, só o fato de acordarmos é sinal que existe um universo inteiro no nosso organismo trabalhando para que estejamos de pé no outro dia.

A vida não nos isenta de sofrermos dores e perdas, mas ela também oferece nesse tempo de luto; de deserto, oportunidades de crescermos. Sinto que o meu tempo está acabando e não sei se aprendi alguma lição muito importante ou se deixei de ver as possibilidades de recomeço por estar ocupado demais alimentando a dor. Mas gostaria muito de construir algo nesse tempo que ainda me resta. Pensei em construir uma casa.

Não posso me permitir construir uma casa na areia, pois as ondas do mar a levaria com mais facilidade do que o tempo que a construiria. Seria só mais um engano; emoção passageira e não posso me dar ao luxo de colocar meu coração à prova.

Uma casa na rocha seria bem mais interessante e mais sábio; poder estruturar minha vida sobre uma base mais sólida e mais segura. Porém, pra ser honesto, minha fé já não está tão consistente e não sei se chegaria tão alto de onde estou hoje.

Só me resta construir uma casinha na árvore. Da morte, resta-se o pó e do pó nascem as árvores que nada mais são que vida que brota da morte. Este é o lugar que preciso construir para mim agora. Uma casa em uma árvore escondida da urbanidade e da manipulação do homem. Árvore que se alimenta de luz e que não teme as sombras da noite, pois usa-se dela para regar suas folhas com o frescor de seu orvalho. Uma árvore que cresce, seca, floresce e dá frutos. Uma árvore bem verde que contemple esperança, recomeço e teimosia de vida.


1. ALVES, Rubem - Do Universo à Jabuticaba - Editora Planeta do Brasil, 3ª edição, Pg. 21, São Paulo, 2012.